A primavera chegou nesta quarta-feira às 16h21 ─ informaram os noticiários. Mas, desconfio mesmo é que ela tenha chagado há duas semanas. Eu percebi isso enquanto esperava o ônibus em um ponto aqui do bairro: uma florzinha desabrochava confiante no delicado galho de uma plantinha que teimava em viver na brecha da calçada próximo ao meio-fio.
A plantinha ─ incólume aos milhares de pés que andejavam por aquele espaço ─ dava uma lição de vida e persistência a todos que passavam por ali. Começou com um pontinho amarelo que dois dias depois estava aberto em uma vivíssima flor amarela que não era maior que um grão de arroz. Fui aí que tive a certeza de que a Primavera tinha chegado.
Anteontem, fingindo que amarrava meu sapato, percebi que a pequena dádiva da natureza tinha cinco pétalas. Cinco viçosas petalazinhas de uma florzinha alheia aos acidentes que lhe poderiam ocorrer: um pezão ingrato ou inocente que poderia esmagá-la em fração de segundos, resto de uma bebida alcoólica que um bebum qualquer poderia jogar no entorno, uma chuva torrencial que poderia quebrar os galhinhos delicados… Mas a plantinha não quer saber de intempéries futuras; quer viver e enfeitar o mundo, perpetuar a vida! Eu, feliz porque era uma das pessoas que tivera o prazer de vê-la e senti-la, feliz porque ela estava viva e florescente!
Ontem, percebi que havia mais dois grãozinhos amarelos na pequena criatura viçosa. Hoje, ao passar por lá, vi mais uma flor aberta e outra adolescendo. Dupla felicidade para mim: a plantinha, incólume, floria, nos anunciava que era primavera, que apesar das intempéries da vida ─ para ela as adversidades do espaço; para nós a covid,-19, o caos político da extrema-direita no poder ─ é importante persistir! Persistir e florir. Porque florimos quando sorrimos! Ah! Nossos sorrisos ocultos pelas máscaras… mesmo assim, sorrimos! Sorrir agora com os olhos, com as palavras, com afeto…
Desconfio que poucas pessoas tenham percebido o espetáculo dessa plantinha. Eu percebi! Eu percebi e senti! Digo “senti” porque a maioria das pessoas não sentem as pequenas e coisas extracorpóreas, não sentem as delicadezas, os mimos natureza nos oferece. Sentir é emocionar-se com o que se vê, é, em essência, ter empatia com o objeto em que contemplamos. Sim, empatia! Se colocar no lugar da flor, por exemplo. Quem se coloca no lugar de uma plantinha? Quem é que se coloca no lugar do sol em um entardecer? No lugar da tarde que se despede de presenteando-nos com sua dourada ternura vespertina? Quem é que se coloca no lugar do beija-flor voando célere e belo sobre a flor? Quem se coloca no lugar da borboleta a cumprir o papel natural de flor voadora e de fecundadora das flores?
Eis que nestes tempos de liquidez ─ em que o ócio é um pecado ─ já não paramos mais para ver as pequenas e médias coisas da vida. Nos ausentamos dessas coisas delicadas e belas. Não que essa ausência seja um defeito humano recente, mas se intensificou. Vivemos para o mundo concreto e insensível dominado pelo dinheiro — cada vez mais desejado e difícil — que nos abriga a fixar nossos olhares e desejos no capital financeiro e no labor extenuante de cada dia; esses são indispensáveis elementos para manter a nossa sobrevivência. Infelizmente, vivemos apenas para o mundo objetivo citadino e concreto!
Mas há, entrementes, aos nossos afazeres capitalistas e necessários para manter a nossa sobrevivência, a ausência e a incompetência nossa em apreciar sensitivamente a maravilha das pequenas e belas coisas da vida — como presenciar uma flor desabrochando! É na contemplação dessas pequenas coisas da vida que sentiremos aquela epifania; aquela sensação gostosa, misto de felicidade, ternura e paixão que nos faz mais ternos e mais humanos. São esses pequenos espetáculos da vida que nos apetecem tanto quanto uma peça de teatro famosa; uma ária de Bach ou um espetáculo circense, um sorriso casto e belo de um bebê.
Ah, os delicados espetáculos da vida cotidiana! Não os percebemos como deveríamos! Agora mesmo começou mais um imenso espetáculo da vida: a Primavera( mesmo que por aqui ela seja quase sutil). Muitas pessoas não vão assistir essa maravilha porque estão mergulhados em seus afazeres. Claro que todos os nossos afazeres diários são necessários, mas é importante deixar um tempinho, ao menos, para sentir as coisas, especialmente as pequenas e médias coisas da vida.
Há inúmeros e belíssimos espetáculos ocorrendo em nossa volta! Não há necessidade de pagar ingresso e nem se deslocar para vê-los. Basta prestar atenção. Agora mesmo, um belo espetáculo lhe espera para lhe proporcionar uma epifania: a Primavera! A Primavera que, por si só, já uma epifania.
Vald Ribeiro
Verdade! A primavera é a única epifania certíssima que ocorre todos os anos. Mas só as pessoas que sabem apreciar o belo da natureza. Só as pessoas românticas conseguem viver esta epifania.