É um bolsonarista linha-dura. A julgar pelo cabelo grisalho deve ter uns 60 ou 70 anos. E a julgar pelo tom de voz, pelo sotaque à Pazuello ele deve ser um militar reformado, certamente do Exército. Ai de uma pessoa “comunista” que cruzar pelo caminho deste senhor porque ele dirá impropérios de centenas de megatons ao pobre comuna. E como todo mundo sabe, para os bolsonaristas, “comunista é toda pessoa que se opõe ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Jair Messias Bolsonaro”. Se alguém perto do bolsonarista linha-dura estiver vestindo roupa em vermelho então, será comunista de extrema-direita ou um petista petralha e, como tal, merecerá o desprezo desse contumaz devoto de Bolsonaro.
Todos os moradores da vizinhança respeitam esse inflamado devoto, não porque ele mereça reverência, mas por medo de seus discursos ferinos, pois se discordassem dele ou falassem mal do “excelso presidente” seria considerado um comunista. Inclusive nenhuma pessoa tinha coragem de reclamá-lo porque todos os dias ele liga o som altíssimo em músicas da Jovem Guarda para toda vizinhança ouvir. E se reclamasse seria pela altura do som. Quem iria se posicionar contra um estilo musical tão prazeroso e jovial quanto aquele? Até a galerinha da geração Z da rua gostava de curtir a musicalidade dos anos 60 que emanava impetuosamente todos os dias da casa do bolsonarista.
Na casa ao lado mora um “comunista”. Não que esse morador fosse filiado ao PCdoB, Psol, PT, PCO ou qualquer outro partido de esquerda. É que esse vizinho tinha uma visão política bem consciente e independente; também tinha a mania de ouvir, além de músicas da tropicália, rock e MPB, ouvir com mais frequência Chico Buarque. Na dedução de um defensor do atual presidente, o que é uma pessoa que ouve Chico senão um comuna?
Há um mês coube dos dois se encontrarem: cada um na frente de suas respectivas casas ─ o bolsonarista varrendo a calçada; o vizinho “comunista” regando as plantinhas do canteiro rente ao muro. Enquanto isso, naquele espaço aberto, dois sons musicais se encontravam: uma da Jovem Guarda, outro de Chico Buarque.
E o bolsonarista, que estava de bom humor:
─ Bom dia!
─ Bom dia!
─ Não sei como você não enjoa de ouvir o tempo todo este cara ─ exclama o Bolsonarista se aproximado da calçada do “comunista”.
Mas o vizinho “comunista” não teve o que responder. Não poderia fazer algum impropério ao volume sonoro de Jovem Guarda, porque, tal qual o devoto de Bolsonaro, era fã desse estilo. Pensou um pouquinho e soltou:
─ Eu fico admirado pelo fato de o senhor curtir tanto as músicas da Jovem Guarda…Jovem Guarda que eu só fã… o senhor sabe! Na minha avaliação, soa estranho um bolsonarista ouvir este tipo de música.
─ Não entendi por que você acha estranho. Não são músicas comunistas.
─ Bem… “Comunista, comunista” só mesmo o nome “Jovem Guarda”, que foi o…
─ O quê?
─ A coisa mais comunista da Jovem Guarda só o nome. O senhor sabia que este nome foi inspirado num discurso de uma das maiores celebridades do Socialismo? O Lenin? Ele disse: “O futuro pertence à jovem guarda porque a velha está ultrapassada”. Foi dessa parte do discurso que …
─ Isso é fake news! Pura fake News! Aposto que é coisa criada pela peste destes sites comunas!
─ Sugiro que o senhor pesquise em diversos sites. O senhor vai ver que tenho razão.
─ Não acredito. Não acredito!
***
Naquele dia, passados mais ou menos meia hora, o som jovial dos anos 60 se silenciou na casa do ancião.
***
Passou-se um mês. Da casa do bolsonarista linha-dura apenas vem o som de uns cantores sertanejos da atualidade que apoiam o atual presidente da República. O vizinho “comunista” arrependeu-se do que dissera ao ancião. Era bem melhor se o som originado na casa do devoto de Bolsonaro fosse ainda da Jovem guarda.
Vald Ribeiro
(vald@palavras1.com.br)