Abro o site da Festa Literária de Paraty e deparo com o texto de apresentação da 19ª edição da Festa: “Nhe’éry, Plantas e Literatura”. O título é insinuante, as palavras “Nhe’éry” e “plantas” me provocam frisson. À medida em que leio o texto, fico sabendo que a palavra que inicia o título se pronuncia “nheeri” e que é o termo ao qual o povo Guarani denomina a Mata Atlântica. Também fico sabendo que a palavra significa “onde as almas se banham”.
“Índio”… “Mata Atlântica”… As duas palavras atiçam a minha memória e me fazem pensar na 1ª Geração do Romantismo brasileiro. A Flip então vai homenagear Gonçalves Dias? José de Alencar? Ah! Iracema! Os índios Tabajaras que Alencar idealizou na Mata Atlântica…
Mas o curso natural da leitura empandeira a minha suspeita. Está no texto: “neste ano teremos uma homenagem coletiva, para todo(a)s o(a)s pensadores(a)s/conhecedor(a)s/mestre(a)s indígenas que tiveram suas vidas interrompidas pela Covid-19”. Quem se lembra da imprensa notificando a morte desses intelectuais? Quem é que viu as grandes revistas da intelectualidade brasileira fazerem menções aos intelectuais indígenas? São pessoas que ajudaram a escrever lindas páginas da nossa história e que não tivemos o privilégio de ao menos de vê-los citados na grande impressa, mas que para a cultura indígena e para a imprensa regional soam tão bem quanto os nomes de Paulo Freire, Carlos Drummond ou ─ para sermos mais contemporâneos ─ como Aldir Blanc ou Alfredo Bosi, esses dois também vítimas da Covid-19.
Vejo que entre os homenageados estão Higino Tenório, escritor, especialista em arte rupestre, benzedor e criador da primeira escola indígena para o povo Tuyuka; Meriná, também benzedora e mestra em rituais de cura e benzimentos do povo Macuxi; o artista plástico e escritor Feliciano Lana… há na lista diversas outras personalidades das artes, da cultura e do ativismo indígena de nosso país que foram vítimas da covid-19 e que serão homenageadas. Fico contente em ver que a Flip não esqueceu de homenagear celebridades intelectuais de “outras sabedorias e narrativas” ─ conforme diz o texto ─ dentre elas o cantor, compositor, artista plástico e pesquisador Nelson Sargento, o escritor Vicente Cecim, o compositor e cronista Aldir Blanc.
Impossível não se empolgar com a nova concepção da 19ª edição da Flip! Todas as Flips foram encantadoras e tiveram uma função social e literária importantíssima, mas a que será realizada entre os dias 27 de novembro e 5 de dezembro terá um encanto e um engajamento nunca dantes ocorrido: a preocupação com as nossas questões indígenas, a preocupação com a natureza, a reflexão da realidade que nos assombra à luz da literatura. E o que a literatura senão o espelho do mundo? Um espelho que nos provoca reações? Um espelho que nos leva à catarse? E o que a catarse senão purificação? Purificação? Qual o significado mesmo de “Nhe’éry”? “onde as almas se banham”. Banhar-se é purificar-se! então! Esta será a Flip da catarse, da purificação.
Vald Ribeiro